-A verdade é que, na altura, ninguém o levou a sério...

-A sério?!

-Claro. Quando ele disse que estava a ficar maluco, ninguém o levou a sério...

-Que é que lhe disseram?...

-Estás doido! Foi o que lhe disseram.

-Era uma vida muito difícil, menina. Muito difícil.

-Calculo.

-Não calcula não. A menina não pode calcular.

-Muito sofrimento, muitas privações...

-Muito.

-Muitas memórias...

-Eu, desses tempos, nem tenho memórias, menina. Só tenho traumatismos.

-Pode lá ser!...

-Então não pode, menina?

-Ambos os quatro?!!

-Claro! Se forem ambos os ambos, acabam por ser ambos os quatro. Ora, conte-os lá bem!

-Não senhor, aquilo lá é tudo muito avançado!
-A sério?
-Até plantam couves galegas nos terraços das piscinas!, está a menina a ver!?...

-E que tal as férias?...

-Excelentes, menina, excelentes.

-E onde esteve, se não é indiscrição?...

-Em Comidorme, menina. Conhece?

-Não. Conheço é Benidorm...

-Fica ao lado.

- É verdade que já dormiu ao relento no deserto da Arábia?...

- É sim senhor, menina.

- E então?...

- Ao princípio sabe bem aquele fresquinho. O pior é de madrugada.

- Eles lá acordam cedo?

- Não é isso, menina. É a geada. De madrugada é quando começa a cair aquela geada islâmica.

-Pois o Anselmo lá se foi embora...

-E não volta?

-Duvido muito. Estava farto!

-Homessa! Farto de quê?!...

-Do miocárdio, menina. Estava farto do miocárdio. Duvido que volte.

-Garanto-lhe, menina, que já ouvi animais que falam como as pessoas...

-Não acredito! Diga lá um.

-Por exemplo, a besta do seu paizinho.

-Quem está muito mal é o Cardoso!
-Então?!...
-Muito mal. Teve de ser internado de urgência. Descobriram-lhe uma doença ruim, já em fase terminal.
-A sério?!... Coitado!
-Muito mal, mesmo.
-Uma doença ruim...
-Muito ruim. Daquelas que mandam uma pessoa para o outro mundo numa semana.
-E em fase terminal?!...
-Em fase terminal! Davam-lhe uma semana de vida! Mas, já se sabe, os hospitais deste país...  Já lá está há quinze dias e nada.

-OAnselmo, coitado, anda muito em baixo. Só tosse e já mal come!...
-Anda fraquito...?
-Muito. Mal se levanta.Descobriram que tem o Bacilo de Cócoras!

-O sr.comendador já leu o Novo Acordo Ortográfico?

-Já sim, menina Elvira.

-E, que me diz?...

-Digo-lhe, menina Elvira, que segundo o Novo Acordo Ortográfico, somos levados a concluir que o Tarzan era, na verdade, um proletário da selva!

-Como assim?!...

-Pois, não era ele um homem, de fato, macaco?...

-Está a menina a ver?... quando os persas perseguiam as corças, calçavam descalços, enquanto os frígios frigiam ovos de Colombo, em frigideiras de fundos falsos...
-Oh, as coisas que o senhor sabe!

-Como lhe disse?

-Sem rodeios.

Virei-me para ele e disse-lhe: o teu fato macaco fugiu para cima do guarda vestidos.

-Deus do céu!

-Reagiu bem, apesar de tudo...

-Pobrecito parece que ainda o estou a ouvir...
-E que é que ele disse?
-Amanhã quando acordar quero dois ovos estrelados!
-E depois?...
-Fechou os olhos e morreu!

-Quem morreu foi o Cardoso!

-Coitado! Era velho?

-Nem por isso; 68.

-Pobrecito na flor da velhice...